segunda-feira, 8 de junho de 2009

DO BAÚ DAS MEMÓRIAS

Fetche Fassa Fabor!

Ainda punha a biqueira do desbotado sapato na soleira da porta e nem ao nariz me haviam chegado sequer aqueles aromas a tinto, aguardente, cerveja e sardinhas assadas, e já ouvia o vozeirão roufenho do Chico Molas: "Ó SSilba, fetche fassa fabor!"

Lá iam também, em direcção ao balcão, o Esquim das Cenouras ( que anda desiludido com a colheita dos transgénicos que em tempos preferiu às cenouras) e a D. Ricardina, esta em passo tipo robocock, ambos de sorriso forçado procurando cativar simpatias para o próximo concurso a regedor da freguesia, quando nisto,a meio caminho, ouvimos o Esquim das Cenouras: "Ó SSilba, fetche fassa fabor!"
E logo de seguida o tilintar da máquina de calcular mental do Silva: "0,50 mais 0,35, são 0,85 cêntimos Esquim. "

Isto começou já lá vão umas décadas. Longe também vão esses tempos em que cá na terrinha se colhia o trigo e o centeio. A cada início de Verão as aldeias do concelho eram invadidas por grupos de segadores que andavam à procura de ganhar umas "jeiras", já que as condições de vida eram particularmente difíceis e as pessoas com menos recursos tinham de agarrar-se aos trabalhos mais árduos.

O Silva, ainda rapaz novo, letrado para a época, 4.º ano feito e a caminho de fazer o 5.º lá no liceu da vila (e não ia parar por ali!), dizia-se também que não só gostava da escrita como também que tinha muito jeito para as contas. Rapaz do boas vontades, muitas cartas ele escreveu às velhotas da aldeia, para o filho na África, para o irmão do Brasil, etc.!

Um dia, chegou à terra um rancho de segadores. Um deles, rapaz novo, cara vermelha e olhar vivaço, recomendado por uma vizinha, vai ter com o Silva para que lhe escrevesse uma carta à namorada. Obviamente que o nosso amigo se apressou a dizer que sim! Ai não, ora, ora, carta à namorada!!! Ah, Ah!, o Silva, malandreco, esfrega as mãos... já aguçando a curiosidade quanto às confidências, saudades, e sabe-se lá que segredinhos mais, o rapaz iria “mandar dizer” à namorada.

Folha de papel na frente, esferográfica apontada à primeira linha. Pode começar, diz ansioso o Silva:
Meu amorzinho...
Sim, continue...
... cá stou, cá m’acho...
Já está. Mais... pede o Silva.
... enquanto por cá andar...
Sim.... mais...
... sou sempre o mesmo.
Já escrevi, continue... o Silva cada vez mais ansioso.
Fetche fassa fabor!
Como? Pergunta o Silva.
Fetche fassa fabor!
Então, não escrevo mais nada, só isto...?
Sim, fetche fassa fabor!

Passaram os anos, o Silva depois de uma vida de muito trabalho mas também, diga-se, muitos êxitos profissionais, mudou-se aqui para a aldeia e como bom amigo, amuidadas vezes por aqui vem dar uma mãozinha. Nem imaginais a cachola com que ficou quando um dia o Chico Molas apareceu com esta ! Certo é que a moda pegou! Fetche fassa fabor!

E hoje, quando alguém por cá, depois de servido e se quer ir embora, é normal pedir a conta berrando pró Silva: "Ó SSilba, fetche fassa fabor!"

Zé dos Anjos.

Nota:
Com este texto, adaptado do seu original, o autor pretende retratar a vida da aldeia (no social e na labuta desta época que era das segadas) de há cerca de 50 anos, não sei se, minimamente, o conseguiu!
Todavia, o texto supra, que contém, ainda, relativamente ao original, um pouco de fantasia inspirada no "contemporâneo", é pura ficção e qualquer semelhança com a realidade, ou personalidades reais, é pura coincidência!

Um abraço.
Até Sábado!
Aníbal José de Sousa

Sem comentários: